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Monthly Archives: julho 2009

Diz-se que nos últimos tempos, sobretudo na ponte aérea antropológica Rio-São Paulo, o debate em torno deste tema – os paradigmas do contorcionismo na antropologia – tem ganhado renovado fôlego. Fala-se em termos de simetrias, flexibilidades, reversibilidades e toda sorte de trejeitos e cacoetes, noções corriqueiras e familiares a todo e qualquer saltimbanco, especialmente os contorcionistas, mas que a princípio soam estranhas num ambiente dedicado quase que única e exclusivamente ao cultivo não do corpo, mas do intelecto. Mas eis que alguns bravos antropólogos vem exercitando esta tarefa quase impossível. Buscando abolir as fronteiras entre o corpo e o intelecto, a ação e a reflexão, o sensível e o inteligível, e assombrados por todos os seus nativos cerebrais, passados e contemporâneos, eis que vai surgindo um novo tipo de atividade no trabalho antropológico, há muito exercida mas só agora oficializada e aceita pelos pares como prática esportiva: o contorcionismo mental.

O contorcionismo mental não é coisa para principiantes. Longe disso, pois seria quase um suicídio, uma irresponsabilidade expor alguém não iniciado em suas técnicas a tamanho estresse! Para se aventurar neste tipo de atividade resolutamente humana, mas que submete a mente humana à condições extra-humanas, ou sobre-humanas, é necessário um longo e dificil adestramento nas sinuosidades do método do volteio, sobretudo o método francês. Só depois de se submeter a este árduo e duro adestramento, o sujeito estará apto a arriscar-se em séries aparentemente simples como esta, colhida aqui totalmente ao acaso e a título de exemplo, mas que exigem a mais rigorosa disciplina para sua completa compreensão: “não pretendo me situar em um lugar exterior ao malabarismo, mas no exterior do malabarismo, no interior da dimensão exterior que lhe é imanente”… Mire veja: é ou não é um troço do muito dificultoso?!

hindu

Meninos com Queixada. Aldeia Rio Negro Ocaia. Rondônia, 1987. Foto: Beto Barcelos.1. A perspectiva Yudjá,  segundo Tânia Stolze Lima: não é que os índios pensam que os porcos são gente, mas sim que os porcos, entre si, se vêem como gente e vêem os humanos como sendo gente assim como eles, ou seja, porcos, e é isto que faz a vida humana muito perigosa.

 

Indio Matis. Terra índigena do Vale do Javari. Amazonas, 1985. Foto: Philippe Erikson.

 2. O perspectivismo ameríndio, segundo Eduardo Viveiros de Castro: macaco é gente, porque gente é macaco de onça; e como onça é gente também, gente é onça de macaco, sendo gente.

 

 

chimpanze3. A perspectiva símia, segundo Franz Kafka: o chimpanzé de “Um relatório à academia”, pequena narrativa de O médico rural, tem de início a absoluta certeza de que não é humano, mas sabe também que pode e deve tornar-se humano, ou melhor, logo descobre que o único caminho para se tornar realmente livre, desde a sua captura na floresta sombria, é mimetizando o poder de seus raptores, e cujo progresso na evolução humana agora relata aos acadêmicos estupefatos…

Aula de teatro. Num esforço de transfiguração… desencontro de mãos, pés, emoção e consciência. Me desespero com a minha própria precariedade.

Crio escape do palco: sento-me em frente de outro, fito seus olhos. São esses os poucos instantes de mim: sem medo, cheia de comunicação, só pulsão. Daquele momento, restou o texto, gesto de palavra:

 

Vou pedir pra vcs se levantarem e se espalharem,

apropriem-se da mesa, sentem-se onde quiserem.

 Não sei ser no palco separado, dividido; só sei ser entre a gente. Por entre a gente.

O palco me é estranho.

 Me dissolvo na platéia, crio o corpo coletivo.

Mas sou platéia que não adormece, mantenho-me FAMINTA.

A toalha não é branca, não. É vermelha. Terra roxa.

 Da platéia crio palco e mesa.

Me alojo na BRECHA, na fenda. No OMITIDO, naquilo que parece esquecido.

Mantenho-me FAMINTA. Cheia de vida, em condições precárias.

 

’Vem por aqui’- dizem-se alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: ‘Vem por aqui!’

 

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há nos meus olhos ironias e cansaços)

E nunca vou por ali…

 

A minha glória é esta:

Criar constrangimento!

Não sentar em mesa pronta.

– Que eu vivo com o mesmo sem vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

 

L., trouxe-lhe uma taça. Sirvo-lhe vinho até derramar. A embriaguez alimenta.

 

Vem por aqui, dizem-me alguns com olhos doces

O DESVIO é o meu prato.

Não tive nem pai nem mãe,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo

 

C.: marmita de pensão na quarta-feira: dia de fartura. No primeiro compartimento: Feijoada. No segundo: Arroz e farinha. No último: laranja e couve.

 

Mantenho-me FAMINTA. Cheia de vida em condições precárias. 

 “Corre em vossas veias sangre velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o longe e a miragem”

 

Sou fruto de uma burguesia decadente, moralmente indecente, alucinadamente coerente.

 

C.: sirvo-lhe manjar com calda de ameixa em prato de porcelana francesa, com relevo na borda. Ah… uma colher de prata com seu próprio nome grafado.

 

Não, não vou por aí!

Só vou por onde me levam meus próprios passos…

Se não podes me oferecer o que me alimenta,

Por que me repetis: “Vem por aqui?”

 

N.: quinoa. O extraordinário no cotidiano. Acabou de ser cozida. Suave na boca, delicadamente doce, alimento potente.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga “vem por aqui”!

 

F.: marmita de bóia-fria, Nossos sheikes do Pro-Alcool. Uma caixinha de metal, que provavelmente tem só arroz e meio ovo cozido. Mas não vou abrir, não. Gosto da intriga que lhe causa. Gosto da dúvida.

 

Eu que nunca principo nem acabo.

Me alojo na BRECHA, na fenda. No OMITIDO, naquilo que parece esquecido.

 

J.; milho verde bem branquinho. Quente e novo. No começo come-se com cuidado, pra sentir os grãos estourarem na boca, mas logo agente se lambuja.

 

O DESVIO é meu prato.

 

R.: chocolate com gengibre. Embrulhado pra presente, com um flor, não qualquer flor não… um cravo vermelho, porque dá pra comer também.

 

Eu tenho minha LOUCURA!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

 

G.: um caju, sem prato, só um caju. Fruta de gosto nada fácil, sem açúcar vulgar. Colorida e com cera por fora, inquietante por dentro: a gente tem vontade de morder, mas tenta só chupar, comida que nunca se contenta com a boca, escorre pelo pescoço.

 

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios

Eu, tenho minha loucura

Levanto-a como um faço a arder na noite escura.

O palco me é estranho.

 

A.: cuia com bolota de farinha, feijão e frango. Use apenas a ponta desses três dedos para ir tirando pedaços devagar.

 

A toalha não é branca, não. É vermelha. Terra roxa.

Porque comida é pra compartilhar. Gente para experimentar.

Bom APETITE.