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Author Archives: guilherme

Estudo de caso número 1 – O flerte e a guerra dos sexos

Estava eu sentado no metrô, como tenho feito sempre – já que o pego num dos pontos finais e normalmente encontro o conforto de viajar bem acomodado quando o trem parte desta estação, e assim permaneço se tiver em mãos um livro para ler ou um caderno para escrever. Uma ou duas estações depois, o vagão começou a ficar cheio e uma moça bonita, magra, alta, com um porte e um traje meio de modelo, meio corporativo, mas desses cargos mais inferiores, deparou-se em minha frente. Era elegante, mas não a custa de muito dinheiro, o que não parecia estar sobrando ali. Notei que usava um sapato de salto alto e, quando terminei de escrever, levantei-me e ofereci-lhe o acento:

_ Quer sentar, moça? Você está de salto…

Ela rapidamente sorriu e disse-me um “não, obrigada”.

Fiquei pensando sobre aquela frase e reparando nela, de rabo de olho, com a curiosidade aguçada de um investigador, porém fazendo de tudo para que não notasse, para que não julgasse ser apenas mais um caso vulgar de flerte. Mas, com isso, estava ao mesmo tempo flertando sub-repticiamente, sem entregar o jogo, porque o flerte é um jogo e a mulher que não corresponde ao flerte é sempre a vencedora. Ao agir de maneira tão disfarçada, eu também evitava o risco da não correspondência, que era iminente – dada a resposta que me dera àquela pergunta – e assim eu também saía ganhando um pouquinho.

Fiquei reparando nela porque intentava descrevê-la, já que emitia um ar discretamente sui generis. Sua roupa era toda preta, a calça social, a blusa de malha, as unhas pintadas num tom rosáceo quase semelhante ao natural da maioria das unhas de pessoas brancas, mas brilhante. Usava uma bolsa larga de tecido moderno, preta de bolinhas brancas, pendurada com uma corrente fina e prateada, em uma das mãos um anel com uma pedra grande, branca. E um par de brincos de “pérolas”. O sapato completava o visual quase de boa-moça, já que preto, porém de fabricação delicada, aberto na frente e com um polido e charmoso lacinho. O contraste de todas essas cores com sua cor de pele e cabelos, que não cabe aqui dizer quais são, era sutilmente harmonioso e marcante. Já a atitude corporal, logo em seguida à minha oferta, ainda que sob pesada dose de discrição – já que, se aparentasse demais, também ela estaria entregando o jogo – passou a emitir um ar de afronta, uma pose de punk, de mulher decidida, quase adolescente.

Quando uma cadeira vagou bem perto de nós, ela não reagiu, deixando que um outro rapaz grande e forte se sentasse. Encostou-se na parede dos fundos do vagão de braços cruzados, olhar blasé, sempre muito acima de minha cabeça, e um quase-sorriso nos lábios (esses quase-sorrisos sempre dão o que pensar).

Depois, segurou-se nos ferros, com uma mão na cintura, nessas poses que fazemos quando estamos indignados ou esperando, como quem não se importa. E, apesar de manter-se sempre o mais afastada possível de mim, continuava ao meu lado, e quase perdeu a porta certa de descer, porque foi a do lado oposto que se abriu para a saída dos passageiros…

Essa atitude toda me fez pensar no que “realmente” queria dizer a única frase que me proferiu. “Não sou obrigada a aceitar as convenções machistas dessa sociedade, nem de cair na sua cantada fajuta”, disse a garota? Ou “não vou me sentar, pois, afinal, sou obrigada a provar que sou uma mulher forte e decidida, feminista e livre, e que não preciso de homem nenhum, apesar de ser uma garota delicada e meiga, das unhas cor-de-rosa”?

Em meio a essas dúvidas, que talvez sejam as dela também, eu pensava o quão distantes estamos quando assim equiparados, distantes como pessoas, impossibilitados de nos vincular, e mesmo de conhecer o outro e de saber o que mais pensa das relações de gênero, sexo e boas maneiras. Digo “o que mais” porque cada gesto desses, cada cruzar de braços, cada “não”, cada forma de ficar em pé dentro de um transporte público, é a manifestação física do que pensamos. É nosso pensamento em ato, nosso corpo pensando com e sem palavras.

O sociólogo alemão Georg Simmel dizia que o flerte era uma forma muito comum de interação nas grandes cidades, inclusive em trasportes públicos como o metrô de Paris. O flerte correspondia a uma relação fugaz, misteriosa, aberta, comum a um ambiente como o espaço público das grandes cidades, no qual nos deparamos com pessoas com as quais podemos não ter nenhum vínculo prévio ou posterior, mas com quem dividimos a mera e fundamental condição de estar juntos.

A experiência de Simmel vem da virada dos séculos XIX e XX. Hoje, creio eu, vivemos um momento mais avançado de impersonalização de certas relações no espaço público. O flerte no metrô, hoje em dia, parece-me cada vez mais evitado, negado, talvez até proibido. Com a nova era do “assédio sexual”, até flertar parece ter se tornado uma prática de risco.

Na mesma viagem, vários minutos depois, visualizei uma garota de cuja fisionomia lembro-me vagamente, bela mas nem tanto, não uma beleza comum, mas um comum belo.

Comecei com ela um jogo de fixações e desvios de olhares. A brincadeira era tentar perceber qualquer vestígio de que ela pudesse estar me olhando. Meus olhos desviavam, às vezes fechavam o foco nela, às vezes circulavam por seu rosto, enquanto seus próprios olhos circulavam pelo ambiente, com um certo brilho, tentando evitar os meus.

Ficou longamente parada, em pé (como eu), na mesma posição, com o rosto posicionado de tal forma que eu podia vê-lo diretamente e que talvez ela pudesse me ver pelo canto do olhar, as feições talvez calculadamente serenas, e aquele mesmo quase-sorriso nos lábios (lábios não tão chamativos quanto os da outra moça, entretanto).

O vagão não estava tão cheio. Se estivesse incomodada comigo, poderia facilmente se mover ou desviar a posição do rosto para outro lado. Mas não o fazia.

Até que cansei, resolvi pedir um tempo, fingi real desatenção e passei a mirar a janela do vagão. Nesse momento ela relaxou-se toda: balançou os braços, mexeu a boca, ajeitou a bolsa, respirou. Pareceu-me ligeiramente embaraçada quando percebeu que eu percebera seus movimentos. Mas em momento algum encarou-me diretamente nos olhos.

Dados esses dados da experiência direta e considerados outros fatores de minha vida que não vêm ao caso mencionar, decidi que de agora em diante, por período indeterminado (pode ser um dia, uma semana, um mês, pode ser até o carnaval chegar) levarei a cabo o seguinte experimento na área das políticas sexuais: não mais iniciarei flerte com mulheres, seja na forma de olhares ou palavras e, caso não possa resistir a uma olhadela, serei discreto a ponto de não entrar no jogo.

O objetivo desse experimento é testar se tal prática (ou contra-prática) pode vir a gerar algum tipo de mudança de comportamento das sujeitas à pesquisa, descobrir também qual será minha reação a esta nova situação (se paro de uma vez de me preocupar com a mulherada), ou mesmo descobrir se haverá alguma dose de melhoramento na minha qualidade de vida quando alhear-me às angústias e diversões desse jogo tão mal jogado ultimamente pela raça urbana.

Tornar-me-ei uma pessoa mais focada, com menos desvios de olhar? Ou devirei cada vez mais um “in”divíduo insensível, impessoal, com a alma de burguês e o corpo de proletário, incapaz de entregar-me de corpo e alma às situações?

(Se me vierem com a ladainha femista de que me tornarei um cara mais romântico e sensível, eu levantarei minha bandeira masculista em debate tão intenso e acalorado que, no geral, será vencido por mim, infelizmente, por WO. O que também será minha maior derrota.)

Dessa experimentação não pretendo tomar notas. E, dependendo de quais forem os resultados, eles jamais serão divulgados.


Estudo de caso número dois – Brasileiro gosta mesmo de fila?

Quando em fim já saída da estação do metrô para pegar a chamada “Ponte O.R.C.A” – um trajeto de micro-ônibus entre duas estações de metrô e trem não conectadas por vias férreas, coisa de brasileiro, diga-se, afinal desde a virada da Era do Café para a Era da Borracha temos tido preferência por automotores correndo no asfalto, ao invés de trens –, fui em direção aos micro-ônibus, sendo todavia alertado pelos funcionários responsáveis de que eu deveria pegar a fila do outro lado.

A fila encaracolava-se em zigue-zague por todo o saguão da estação, saía pela porta de trás, dava a volta pela calçada ao redor do prédio e voltava assim para a porta da frente, onde eu tentara inocentemente embarcar no businho.

Entrei normalmente na fila, como faço de costume, e comecei a reparar nas caras das pessoas. No meio dessa reparação, veio-me um repente – ou uma “epifania”, como dizem os moderninhos, por influência das séries de TV norte-americanas – e me perguntei: afinal de contas, como essas pessoas todas são obedientes! Existe ali uma multidão e cada um entra na fila tranqüilamente, sem uma expressão de revolta, sem uma reclamação, sem um A.

Rindo-me e olhando ao redor, cogitei a proposta de um experimento, que aqui divido com o leitor, para que possa levar a cabo por sua própria conta, tomando parte voluntária nesse laboratório de políticas corporais coletivas. Um grupo de pessoas, previamente combinado, adentraria à fila da O.R.C.A., cada pessoa bastante afastada uma da outra, e cada um começaria fazer comentários em voz alta de desagravo em relação àquela situação. Uma começaria, então, a responder os desagravos da outra, criando quase uma conversa coletiva.

Como reagiriam as outras pessoas? Elas também levantariam sua voz? Elas movimentariam seus corpos de alguma maneira imprevisível à rotina de uma fila?

Caso o experimento tomasse proporções maiores, seria aconselhado que fosse revelado aos demais participantes involuntários, num momento oportuno. Afinal, todo “contrato social” precisa ser explicitado quando a intenção é experimentar com ele.

Já em casa, conversando com minha mulher sobre meus planos de pesquisa, sobre o flerte e sobre a fila, o relato que me deu de seu próprio comportamento no jogo do flerte confirmou ainda mais minhas suspeitas quanto à estratégia de jogo feminina. Mas, quanto à fila, ela ponderou que nos pontos de ônibus e nas entradas de vagão a mesma costuma ser pouco respeitada, quase sempre furada e que, no momento de entrar nos transportes públicos, as pessoas se aglomeram de forma desordenada e pouco polida. E que aquele comportamento ordeiro que eu presenciara era típico não de qualquer brasileiro em qualquer fila, mas sim da fila da ponte O.R.C.A.

Mas por quê, pensamos? Seria porque na fila da ponte O.R.C.A existe um elemento a mais de controle: aquele papelzinho que nos entregam na catraca do metrô e que devemos mostrar para o fiscal na porta do micro-ônibus? Portanto, brasileiro só é bem comportado em fila quando tem um papel na mão, e a materialidade do papelucho tem um poder soberano tão grande que jamais é questionada? Somos mesmo cidadãos de papel, como diria o outro? É o pedaço de papel a verdadeira dádiva estatal que nos faz estar juntos?

Fica aí a pergunta. Quem quiser, pode tentar respondê-la na prática, com o papel, o corpo, a voz e a alma.

( Primeira versão do texto publicada em http://punkcanibal.zip.net )

Existe um autor de obras antropológicas muito pouco conhecido nas ciências sociais brasileiras, talvez não tanto nas Letras mas com certeza na Antropologia, porém afamado internacionalmente, principalmente nos Estados Unidos e em países de língua espanhola. Seu nome é René Girard.

Sua tese – e todos os fenômenos sociais, dos mitos aos ritos, passando pela psiquê humana, pela literatura etc., o que dá a ela um pequeno toque megalomaníaco – se fundamenta no chamado “desejo mimético”. Este é o impulso que faz duas pessoas competirem pelo mesmo objeto. Existiria na origem de tudo um desejo comum por um objeto escasso, e isso seria anterior às diferenças geradas pelas rupturas advindas da competição. O cúmulo desse impulso chegaria quando as pessoas, uma imitando a outra, formariam um grande bloco violento de todos contra um, encontrando um bode expiatório para sua insatisfação. Este seria a vítima sacrificial, que depois de morta seria transformada no deus, no totem, no tabu, algo assim. A origem da “sociedade”, em suma, seria o linchamento.

A tese é sedutora e explica diversos fenômenos modernos. Explica muito bem um fenômeno ocorrido ontem numa universidade privada da Grande São Paulo (mais precisamente do meu amado ABC paulista).

Assim como algumas igrejas consideradas shoppings centers da fé, onde você entra e paga por umas bênçãos e alguns exorcismos, num frenesi coletivo de multidão, existem hoje universidades privadas onde se consome educação como se comprasse fast-food (ou enquanto se compra fast-food, já que essas universidades têm praça de alimentação). Esse tipo de empreendimento, em defesa do desenvolvimento da nação brasileira, beneficia-se da sempre crescente competição por cargos no mercado de trabalho e no infindável exército de reserva produzido pelo capitalismo.

O capitalismo é uma máquina de desperdiçar pessoas, ela precisa ter gente sobrando para funcionar. E para essas pessoas que sobram, ela ainda oferece cursos de “educação superior” e ganha com isso. Esse é o chamado avanço moderno: no passado o exército de reserva recebia a esmola da educação básica, hoje é o consumo da educação superior.

O que aconteceu ontem, então, num lugar como esse, tão seguro quanto um shopping center? Em suma, uma garota loira, de corpo escultural, resolveu ir à aula usando um vestido vermelho muito curto e apertadinho no corpo. Roupa de puta, diria a maioria.

E fama de puta é o que não falta, pois dizem que as prostitutas são uma clientela importante desse tipo de empresa educativa.

Isso certamente deixou os colegas da gostosa furiosos: como alguém ousava confirmar o estereótipo? Confirmar o que já desconfiavam: que aquela universidade tinha como público pessoas à margem do mercado, pessoas que precisavam vender seu próprio sexo, sua intimidade, para viver? Confirmar as desconfianças de que sua própria universidade, seu próprio objeto de consumo, confundia-se com uma puta? Uma universidade prostituta? Não, isso não! A multidão de milhares estudantes, furiosa, perseguiu a menina por toda a universidade e só não conseguiu o que queria porque alguém chamou a polícia.

Se Adorno estivesse vivo e dando aula numa universidade privada brasileira virada de pernas para o ar por estudantes revoltados, pelo menos dessa vez teria razão em chamar a polícia.

Na luta coletiva por um objeto escasso: um emprego, a prostituta é uma vítima muito propícia para a violência mimética insatisfeita. Ela “representa” – com letra maiúscula, já que segundo Girard a vítima sacrificial seria a origem de toda representação – a mercantilização da vida nua. Maldição de nudez à qual seus colegas não querem se ver expostos. Pois sabem que, vestidos ou despidos, são mercantis como ela. Daí seu linchamento moral em praça (de alimentação) pública (de uma instituição privada).

***

Calma, não me linche, leitor!

Com isso não quero dizer que a menina seja uma prostituta só por estar usando minissaia ou vestido curto e estar expondo ao mundo seu corpo sensual. E também não quero dizer que as prostitutas devam ser achincalhadas por representarem o cúmulo da maldade mercantil. Pelo contrário, talvez as prostitutas sejam mais desviantes do mercado do que possam parecer. De certa forma elas anunciam que, no limite, não existe escassez econômica se você está disposto a dividir sua mais valiosa intimidade com o mundo.

Também não quero dizer que esses estudantes não tenham lá alguma razão em sua revolta diante da marginalização – pois para o modo de vida capitalista a margem não é lá um lugar muito bem quisto.

De volta a Girard, gostaria de discordar dele notando que sua tese só funciona graças ao postulado da escassez, que é o postulado da Economia utilitarista neo-clássica.

A teoria de Girard funciona muito bem na “sociedade” da escassez ou, melhor, na “sociedade” em que o desperdício, para falar com Bataille outra vez, não é de coisas mas de gente.

Porque onde o postulado da escassez não está colocado – nas chamadas “sociedades da afluência” estudadas por Marshall Sahlins, a satisfação é fácil e garantida. As necessidades são satisfeitas graças ao aproveitamento da abundância da vida, graças a conhecimentos profundos e detalhados do meio ambiente, como mostrou Lévi-Strauss ao falar do “pensamento selvagem”, e talvez graças a uma diversidade de objetos do desejo, ou do desvio do desejo.

Reaproveitada por Pierre Clastres para falar das “sociedades contra o Estado”, a abundância é a condição necessária da relação de povos como os ameríndios e seus líderes são muitas vezes responsáveis por essa abundância e essa relação. Líderes sem poder e poderes fragmentados em diferentes aspectos, cargos e funções, que dão fruição para seus desejos. Não sem perdas, sem dor e sem austeridade, mas uma austeridade poderosa e generosa, mágica. E sempre com direito à preguiça…

O desvio que aparece nas “sociedades da afluência” e nas “sociedades contra o Estado” não é a forma predominante na nossa “sociedade”, sem dúvida. Mas ele também está presente nela. Em diversos lugares. Presente até nas prostitutas, ou na própria universidade.

No Brasil a universidade pública é o objeto de desejo máximo no sistema educacional (ao contrário do Estados Unidos, mas não tão radical quanto na Argentina, onde o acesso é muito maior), tudo bem… Mas o que importa é que instituições como ela, voltadas para a pesquisa, propiciam tanto vagas empregatícias e privilégios para os que a freqüentam quanto favorecem caminhos desviantes. A universidade pública não é una.

Mas será que, por ironia da tese de Girard, eu estaria aqui tentando me diferenciar dos meus competidores supostamente inferiores, mostrando que eu tenho mais legitimidade que eles ao acesso e à produção do objeto do saber só porque estudo em uma universidade pública? Que, no fundo, competimos pela mesma coisa?

Pois é isso que quero crer que não.

Porque a universidade que se volta à pesquisa permite que alguns encontrem um espaço reduzido de acesso a verbas, levando muitas vezes uma vida mais modesta que a de seus colegas de classe (nos dois sentidos da palavra “classe”) que optaram pelo mercado, mas se dedicando a um fim bem diverso do deles. Um fim que, no mínimo, tem sua dose de saber desinteressado. E para estudar coisas tão “desinteressantes” quanto a vida de Gioconda Mussolini (quem?!) ou os complicados povos Jê do Brasil Central, para estudar a vida de prostitutas, hermafroditas ou de pessoas que matam a própria família, como fez Foucault em seu libelo pela vida desviante e anti-fascista. Para estudar política ameríndia, xamanismo, dádiva, “sociedades da afluência” e “sociedades contra o Estado”…

No máximo, este é um fim que é puro desvio, pura busca de diferença.

Então, feliz ou infelizmente, a universidade pública brasileira propicia um canal para um desvio, obviamente um desvio minoritário (diferente do que ocorre na América indígena…), mas um desvio presente, antigo e atual, mito de origem da Universidade que ainda faz por se manifestar aqui e ali, por menos que seja.

***

De volta ao desvio da prostituta: não são só os acadêmicos ou os radicais que têm a percepção do fascismo do desejo mimético da escassez. Falando sobre o assunto de ontem com um colega antropólogo pela internet, ele me contou o seguinte. Estava ele com uma prostituta, uma garota de programa profissional, quando ela lhe disse que estudava Administração na já referida universidade privada e que ficava espantada com um fenômeno que notava lá. Nessa instituição os alunos se dividiam entre si com uma precisão extrema: os loiros andariam com os loiros, os morenos com os morenos, os mestiços com os mestiços, os pagodeiros com os pagodeiros, os rappers com os rappers, os ricos com os ricos, os gordos com os gordos e assim por diante. Ela não entendia como isso acontecia porque, segundo ela, fora dali não era assim… A violência mimética estava lá, anunciada.

Certa ou errada sobre a proliferação desse fenômeno, talvez graças a sua própria vida pessoal se situar num lugar em que as misturas aconteçam mais do que no resto da “sociedade”, ela teve sensibilidade e imaginação sociológica para perceber a situação e o perigo.

Um movimento panóptico e individualizante, um sistema de classificação que não tolera as figuras de linguagem, que precisa chegar ao cúmulo da identidade. Cada estudante não apenas fichado e separado pelo seu histórico escolar (ou pela sua especialidade de pesquisa…), mas também pela sua espontânea segregação.

Um perigo que está muito mais disseminado e muito mais presente nos meios intelectualizados ou radicais do que se imagina, haja vista o fim da moda do topless na França, por exemplo, ou a moralidade pudica do politicamente correto, que repudia todo tipo de referência ao sexo. Uma moralidade que não é muito diferente do machismo dos doutores que afirmam que, “no Brasil”, uma mulher que anda assim de vermelho e vestidinho colado está pedindo para sofrer violência, portanto não está livre de dolo e, obviamente, de culpa. Um tabu do sexo e também da diferença, que faz com que partidos e coletivos de esquerda ou anarquistas se separem cada vez mais uns dos outros, inclusive.

Ao contrário desse modo de agir, a antropologia mostra, desde Durkheim e Mauss até Lévi-Strauss, que as formas de classificar e relacionar diferenças nem sempre e nem em todo lugar foram ou são tão terríveis assim como os sistemas classificatórios das instituições modernas e sua busca por controle, identidade e individualização.

Acredito ter lido num artigo escrito por meu saudoso colega Luis Fernando Pereira que, segundo Lévi-Strauss, nos mitos ameríndios encontra-se um conflito entre os pólos impossíveis da proximidade e identidade máximas e da distância e da diferença máximas. Entre a linguagem figurada máxima e a identidade máxima entre símbolo e referente, mas um conflito que não se resolve jamais e uma opção que nunca é definitiva nem extrema. Parece-me que, ao contrário deles, ao separar tanto esses dois pólos, tentamos resolvê-los e acabamos por optar por uma equivalência de diferença com identidade, o que no limite é uma negação do simbólico.

Um perigo que está presente na ingenuidade simbólica cotidiana, da mais anedótica à mais mortífera. Da avó que confunde a personalidade dos personagens da novela com a de seus atores e bateria no vilão do folhetim se o visse na rua, até o homem de bem que confunde um negro com um bandido e…

Aparência e essência, imagem e ação, nada se duplica, nada diverge, tudo se unifica, torna-se puro. É papo reto, sem duplos sentidos, sem terceiras intenções, sem errar nem passar vergonha. É o eterno retorno do fascismo.

Proposta de ação direta: vamos todos usar minissaia. Sobretudo as mulheres, as mais voluptuosas.

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