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Author Archives: André-Kees Schouten

cientista social, mestre e doutorando em antropologia social junto ao programa de pós-graduação em antropologia social da Universidade de São Paulo, interessado nas possibilidades de uma antropologia benjaminiana, ou nos diálogos entre o pensamento de Walter Benjamin e o pensamento antropológico, clássico e contemporâneo.

Ninguém há de negar que o tucano é uma das mais belas aves de nossas florestas, legítimo representante da fauna brasileira, quiçá das Américas. O porte, as cores, a performance no ar ou trepando e saltitando pelas árvores, a monogamia e a solidariedade de macho e fêmea no cuidado com sua prole… Isto sem falar de seu magnífico e característico bico que, pela variedade de espécies, se apresenta nas mais diversas cores, nuances, formatos e tamanhos, desde o amarelo-alaranjado do enorme tucano-toco, o mais conhecido, até o tucano do bico-roxo, o valentão, passando pelo tucano do bico castanho, tucano do bico preto, sem se esquecer aqui do pequenino tucaninho verde…Tão Brasil!

É bem verdade que, apesar da enormidade e imponência de seu bico, este não é tão forte, dada a desproporção entre seu tamanho e a capacidade de sua alavanca maxilar. Quero dizer, seu bico mais assusta e fascina do que, a primeira vista, produz estragos, tal como é capaz o pequeno bico curvo de um gavião, mesmo o anão, por exemplo. Mas nem por isso os tucanos deixam de ter o seu lado pérfido. Não tendo grande força nos bicos, e necessitando de um complemento protéico em sua dieta baseada em frutas, os tucanos às vezes se tornam caçadores implacáveis e oportunistas, perseguindo pequenos animais indefesos, como lagartos, rãs e pererecas, ou mesmo assediando pássaros menores que, arrancados de seus ninhos com truculência e sem a menor compaixão, vêem estes serem destruídos pelo impiedoso adversário que usurpa seus ovos e filhotes para saciar a fome, sem piedade, em benefício de si e dos seus. Numa palavra: tucanos são capazes de comer criancinhas!

 Seria mera coincidência…

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“O rei está morto… Viva o seu rank!”

Diz-se que nos últimos tempos, sobretudo na ponte aérea antropológica Rio-São Paulo, o debate em torno deste tema – os paradigmas do contorcionismo na antropologia – tem ganhado renovado fôlego. Fala-se em termos de simetrias, flexibilidades, reversibilidades e toda sorte de trejeitos e cacoetes, noções corriqueiras e familiares a todo e qualquer saltimbanco, especialmente os contorcionistas, mas que a princípio soam estranhas num ambiente dedicado quase que única e exclusivamente ao cultivo não do corpo, mas do intelecto. Mas eis que alguns bravos antropólogos vem exercitando esta tarefa quase impossível. Buscando abolir as fronteiras entre o corpo e o intelecto, a ação e a reflexão, o sensível e o inteligível, e assombrados por todos os seus nativos cerebrais, passados e contemporâneos, eis que vai surgindo um novo tipo de atividade no trabalho antropológico, há muito exercida mas só agora oficializada e aceita pelos pares como prática esportiva: o contorcionismo mental.

O contorcionismo mental não é coisa para principiantes. Longe disso, pois seria quase um suicídio, uma irresponsabilidade expor alguém não iniciado em suas técnicas a tamanho estresse! Para se aventurar neste tipo de atividade resolutamente humana, mas que submete a mente humana à condições extra-humanas, ou sobre-humanas, é necessário um longo e dificil adestramento nas sinuosidades do método do volteio, sobretudo o método francês. Só depois de se submeter a este árduo e duro adestramento, o sujeito estará apto a arriscar-se em séries aparentemente simples como esta, colhida aqui totalmente ao acaso e a título de exemplo, mas que exigem a mais rigorosa disciplina para sua completa compreensão: “não pretendo me situar em um lugar exterior ao malabarismo, mas no exterior do malabarismo, no interior da dimensão exterior que lhe é imanente”… Mire veja: é ou não é um troço do muito dificultoso?!

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Meninos com Queixada. Aldeia Rio Negro Ocaia. Rondônia, 1987. Foto: Beto Barcelos.1. A perspectiva Yudjá,  segundo Tânia Stolze Lima: não é que os índios pensam que os porcos são gente, mas sim que os porcos, entre si, se vêem como gente e vêem os humanos como sendo gente assim como eles, ou seja, porcos, e é isto que faz a vida humana muito perigosa.

 

Indio Matis. Terra índigena do Vale do Javari. Amazonas, 1985. Foto: Philippe Erikson.

 2. O perspectivismo ameríndio, segundo Eduardo Viveiros de Castro: macaco é gente, porque gente é macaco de onça; e como onça é gente também, gente é onça de macaco, sendo gente.

 

 

chimpanze3. A perspectiva símia, segundo Franz Kafka: o chimpanzé de “Um relatório à academia”, pequena narrativa de O médico rural, tem de início a absoluta certeza de que não é humano, mas sabe também que pode e deve tornar-se humano, ou melhor, logo descobre que o único caminho para se tornar realmente livre, desde a sua captura na floresta sombria, é mimetizando o poder de seus raptores, e cujo progresso na evolução humana agora relata aos acadêmicos estupefatos…

Em Shamanism, Colonialism and Wild Man [1983], Michael Taussig afirma que o realismo mágico através do qual opera as histórias sobre os horrores da selva e da selvageria foi essencial à organização do trabalho de exploração da borracha na região do Putumaio, assim como a ficção consumista de Polanyi [1957] foi para a economia capitalista desenvolvida, afirmando então que o “[…] crucial é entender como essas histórias operaram, através do realismo mágico, a criação de uma cultura do terror que dominava tanto os brancos como os índios”.

indios_huitotoCom isto, afirma o antropólogo que a análise dessas realidades ficcionais e da imaginação que as alimenta – “[…] uma poderosa força política sem a qual não se poderia ter realizado a conquista nem o controle da extração da borracha” – deve voltar-se aos seus aspectos míticos, encerrados na relação entre selvageria e negócio, canibalismo e capitalismo, concluindo que, no caso do Putumaio, o que requer maior análise é a mímese colonial entre o mal atribuído aos selvagens e a selvageria perpetrada pelos brancos, mímese recíproca – embora distorcida – que é intrínseca à construção cultural da realidade colonial: “[…] ‘espelho colonial’ que devolve aos conquistadores o reflexo da barbárie de suas próprias relações sociais, barbárie que é imputada aos maus selvagens. […] E o que é transformado em discurso pela astuciosa prática narrativa dos brancos é o mesmo que eles praticam nos corpos dos índios”.
Tal leitura a contrapelo do texto de Taussig, se assim posso falar, parece ressoar numa pequena narrativa de Franz Kafka, que reproduzo a seguir, sendo recomendada a rigorosa leitura em voz alta, para a apreensão do ritmo impresso na prosa:
   
NA GALERIA
Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mão que na verdade são martelos a vapor – talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o BASTA! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.
 
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Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande salto mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta na poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo inteiro – uma vez que é assim o espectador da galeria apóia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber.

 ♦

Segundo seu tradutor, Modesto Carone, esta narrativa, contida em O médico rural [1990], é um “[…] verdadeiro poema em prosa composto por dois períodos e duas codas dialeticamente articulados, em que os dados da realidade nua e crua do primeiro são apresentados como hipótese, ao passo que a versão distorcida e cor-de-rosa do segundo vem marcada pelas certezas do indicativo. Nada disso no entanto é estranho, principalmente para quem disse, um dia, que no mundo ‘há muita esperança, mas não para nós'”. Nada estranha também a proximidade com Taussig, se lembrarmos que este encontra o princípio ‘natural’ da mímese – e seu leitmotiv – em outra narrativa kafkiana do mesmo livro, “Um relatório à academia”, do qual Taussig empresta o título ao prefácio de seu Mimesis and alterity [1993].

Assim, pergunto: Em que medida os “índios” do Putumaio descritos por Michael Taussig guardam semelhanças com esta amazona frágil e tísica, mas que se apresenta como bela dama em branco e vermelho, girando por séculos a fio no picadeiro macabro do espaço da morte? Em que medida os “brancos” não se parecem com este diretor de circo a empunhar o chicote chamado “exigências de mercado”, cujas chibatadas mantêm o galope do cavalo chamado “empresa capitalista” em torno do pidadeiro da economia global? Em que medida os “muchachos” não se aproximam dos orgulhosos criados de libré que controlam as cortinas/véu alucinatório, sem descerrá-lo todavia? Em que medida o ocidente não se senta na galeria e, ao assistir a tal espetáculo macabro de que é co-partícipe, chora sem o saber? E, finalmente, o quanto não haveria deste espectador que irrompe no picadeiro para dizer BASTA! em Timerman, em Taussig e em Mutumbajoy, ao buscarem, tal qual outros escritores argentinos do período da sua ditadura militar (como Manuel Puig e Luis Gusmán), romper o círculo de sortilégio das narrativas sobre o terror ao orquestrar o realismo mágico com a realidade da magia [Taussig 1983]?