Pular navegação

Category Archives: -verbo-

Ninguém há de negar que o tucano é uma das mais belas aves de nossas florestas, legítimo representante da fauna brasileira, quiçá das Américas. O porte, as cores, a performance no ar ou trepando e saltitando pelas árvores, a monogamia e a solidariedade de macho e fêmea no cuidado com sua prole… Isto sem falar de seu magnífico e característico bico que, pela variedade de espécies, se apresenta nas mais diversas cores, nuances, formatos e tamanhos, desde o amarelo-alaranjado do enorme tucano-toco, o mais conhecido, até o tucano do bico-roxo, o valentão, passando pelo tucano do bico castanho, tucano do bico preto, sem se esquecer aqui do pequenino tucaninho verde…Tão Brasil!

É bem verdade que, apesar da enormidade e imponência de seu bico, este não é tão forte, dada a desproporção entre seu tamanho e a capacidade de sua alavanca maxilar. Quero dizer, seu bico mais assusta e fascina do que, a primeira vista, produz estragos, tal como é capaz o pequeno bico curvo de um gavião, mesmo o anão, por exemplo. Mas nem por isso os tucanos deixam de ter o seu lado pérfido. Não tendo grande força nos bicos, e necessitando de um complemento protéico em sua dieta baseada em frutas, os tucanos às vezes se tornam caçadores implacáveis e oportunistas, perseguindo pequenos animais indefesos, como lagartos, rãs e pererecas, ou mesmo assediando pássaros menores que, arrancados de seus ninhos com truculência e sem a menor compaixão, vêem estes serem destruídos pelo impiedoso adversário que usurpa seus ovos e filhotes para saciar a fome, sem piedade, em benefício de si e dos seus. Numa palavra: tucanos são capazes de comer criancinhas!

 Seria mera coincidência…

Estudo de caso número 1 – O flerte e a guerra dos sexos

Estava eu sentado no metrô, como tenho feito sempre – já que o pego num dos pontos finais e normalmente encontro o conforto de viajar bem acomodado quando o trem parte desta estação, e assim permaneço se tiver em mãos um livro para ler ou um caderno para escrever. Uma ou duas estações depois, o vagão começou a ficar cheio e uma moça bonita, magra, alta, com um porte e um traje meio de modelo, meio corporativo, mas desses cargos mais inferiores, deparou-se em minha frente. Era elegante, mas não a custa de muito dinheiro, o que não parecia estar sobrando ali. Notei que usava um sapato de salto alto e, quando terminei de escrever, levantei-me e ofereci-lhe o acento:

_ Quer sentar, moça? Você está de salto…

Ela rapidamente sorriu e disse-me um “não, obrigada”.

Fiquei pensando sobre aquela frase e reparando nela, de rabo de olho, com a curiosidade aguçada de um investigador, porém fazendo de tudo para que não notasse, para que não julgasse ser apenas mais um caso vulgar de flerte. Mas, com isso, estava ao mesmo tempo flertando sub-repticiamente, sem entregar o jogo, porque o flerte é um jogo e a mulher que não corresponde ao flerte é sempre a vencedora. Ao agir de maneira tão disfarçada, eu também evitava o risco da não correspondência, que era iminente – dada a resposta que me dera àquela pergunta – e assim eu também saía ganhando um pouquinho.

Fiquei reparando nela porque intentava descrevê-la, já que emitia um ar discretamente sui generis. Sua roupa era toda preta, a calça social, a blusa de malha, as unhas pintadas num tom rosáceo quase semelhante ao natural da maioria das unhas de pessoas brancas, mas brilhante. Usava uma bolsa larga de tecido moderno, preta de bolinhas brancas, pendurada com uma corrente fina e prateada, em uma das mãos um anel com uma pedra grande, branca. E um par de brincos de “pérolas”. O sapato completava o visual quase de boa-moça, já que preto, porém de fabricação delicada, aberto na frente e com um polido e charmoso lacinho. O contraste de todas essas cores com sua cor de pele e cabelos, que não cabe aqui dizer quais são, era sutilmente harmonioso e marcante. Já a atitude corporal, logo em seguida à minha oferta, ainda que sob pesada dose de discrição – já que, se aparentasse demais, também ela estaria entregando o jogo – passou a emitir um ar de afronta, uma pose de punk, de mulher decidida, quase adolescente.

Quando uma cadeira vagou bem perto de nós, ela não reagiu, deixando que um outro rapaz grande e forte se sentasse. Encostou-se na parede dos fundos do vagão de braços cruzados, olhar blasé, sempre muito acima de minha cabeça, e um quase-sorriso nos lábios (esses quase-sorrisos sempre dão o que pensar).

Depois, segurou-se nos ferros, com uma mão na cintura, nessas poses que fazemos quando estamos indignados ou esperando, como quem não se importa. E, apesar de manter-se sempre o mais afastada possível de mim, continuava ao meu lado, e quase perdeu a porta certa de descer, porque foi a do lado oposto que se abriu para a saída dos passageiros…

Essa atitude toda me fez pensar no que “realmente” queria dizer a única frase que me proferiu. “Não sou obrigada a aceitar as convenções machistas dessa sociedade, nem de cair na sua cantada fajuta”, disse a garota? Ou “não vou me sentar, pois, afinal, sou obrigada a provar que sou uma mulher forte e decidida, feminista e livre, e que não preciso de homem nenhum, apesar de ser uma garota delicada e meiga, das unhas cor-de-rosa”?

Em meio a essas dúvidas, que talvez sejam as dela também, eu pensava o quão distantes estamos quando assim equiparados, distantes como pessoas, impossibilitados de nos vincular, e mesmo de conhecer o outro e de saber o que mais pensa das relações de gênero, sexo e boas maneiras. Digo “o que mais” porque cada gesto desses, cada cruzar de braços, cada “não”, cada forma de ficar em pé dentro de um transporte público, é a manifestação física do que pensamos. É nosso pensamento em ato, nosso corpo pensando com e sem palavras.

O sociólogo alemão Georg Simmel dizia que o flerte era uma forma muito comum de interação nas grandes cidades, inclusive em trasportes públicos como o metrô de Paris. O flerte correspondia a uma relação fugaz, misteriosa, aberta, comum a um ambiente como o espaço público das grandes cidades, no qual nos deparamos com pessoas com as quais podemos não ter nenhum vínculo prévio ou posterior, mas com quem dividimos a mera e fundamental condição de estar juntos.

A experiência de Simmel vem da virada dos séculos XIX e XX. Hoje, creio eu, vivemos um momento mais avançado de impersonalização de certas relações no espaço público. O flerte no metrô, hoje em dia, parece-me cada vez mais evitado, negado, talvez até proibido. Com a nova era do “assédio sexual”, até flertar parece ter se tornado uma prática de risco.

Na mesma viagem, vários minutos depois, visualizei uma garota de cuja fisionomia lembro-me vagamente, bela mas nem tanto, não uma beleza comum, mas um comum belo.

Comecei com ela um jogo de fixações e desvios de olhares. A brincadeira era tentar perceber qualquer vestígio de que ela pudesse estar me olhando. Meus olhos desviavam, às vezes fechavam o foco nela, às vezes circulavam por seu rosto, enquanto seus próprios olhos circulavam pelo ambiente, com um certo brilho, tentando evitar os meus.

Ficou longamente parada, em pé (como eu), na mesma posição, com o rosto posicionado de tal forma que eu podia vê-lo diretamente e que talvez ela pudesse me ver pelo canto do olhar, as feições talvez calculadamente serenas, e aquele mesmo quase-sorriso nos lábios (lábios não tão chamativos quanto os da outra moça, entretanto).

O vagão não estava tão cheio. Se estivesse incomodada comigo, poderia facilmente se mover ou desviar a posição do rosto para outro lado. Mas não o fazia.

Até que cansei, resolvi pedir um tempo, fingi real desatenção e passei a mirar a janela do vagão. Nesse momento ela relaxou-se toda: balançou os braços, mexeu a boca, ajeitou a bolsa, respirou. Pareceu-me ligeiramente embaraçada quando percebeu que eu percebera seus movimentos. Mas em momento algum encarou-me diretamente nos olhos.

Dados esses dados da experiência direta e considerados outros fatores de minha vida que não vêm ao caso mencionar, decidi que de agora em diante, por período indeterminado (pode ser um dia, uma semana, um mês, pode ser até o carnaval chegar) levarei a cabo o seguinte experimento na área das políticas sexuais: não mais iniciarei flerte com mulheres, seja na forma de olhares ou palavras e, caso não possa resistir a uma olhadela, serei discreto a ponto de não entrar no jogo.

O objetivo desse experimento é testar se tal prática (ou contra-prática) pode vir a gerar algum tipo de mudança de comportamento das sujeitas à pesquisa, descobrir também qual será minha reação a esta nova situação (se paro de uma vez de me preocupar com a mulherada), ou mesmo descobrir se haverá alguma dose de melhoramento na minha qualidade de vida quando alhear-me às angústias e diversões desse jogo tão mal jogado ultimamente pela raça urbana.

Tornar-me-ei uma pessoa mais focada, com menos desvios de olhar? Ou devirei cada vez mais um “in”divíduo insensível, impessoal, com a alma de burguês e o corpo de proletário, incapaz de entregar-me de corpo e alma às situações?

(Se me vierem com a ladainha femista de que me tornarei um cara mais romântico e sensível, eu levantarei minha bandeira masculista em debate tão intenso e acalorado que, no geral, será vencido por mim, infelizmente, por WO. O que também será minha maior derrota.)

Dessa experimentação não pretendo tomar notas. E, dependendo de quais forem os resultados, eles jamais serão divulgados.


Estudo de caso número dois – Brasileiro gosta mesmo de fila?

Quando em fim já saída da estação do metrô para pegar a chamada “Ponte O.R.C.A” – um trajeto de micro-ônibus entre duas estações de metrô e trem não conectadas por vias férreas, coisa de brasileiro, diga-se, afinal desde a virada da Era do Café para a Era da Borracha temos tido preferência por automotores correndo no asfalto, ao invés de trens –, fui em direção aos micro-ônibus, sendo todavia alertado pelos funcionários responsáveis de que eu deveria pegar a fila do outro lado.

A fila encaracolava-se em zigue-zague por todo o saguão da estação, saía pela porta de trás, dava a volta pela calçada ao redor do prédio e voltava assim para a porta da frente, onde eu tentara inocentemente embarcar no businho.

Entrei normalmente na fila, como faço de costume, e comecei a reparar nas caras das pessoas. No meio dessa reparação, veio-me um repente – ou uma “epifania”, como dizem os moderninhos, por influência das séries de TV norte-americanas – e me perguntei: afinal de contas, como essas pessoas todas são obedientes! Existe ali uma multidão e cada um entra na fila tranqüilamente, sem uma expressão de revolta, sem uma reclamação, sem um A.

Rindo-me e olhando ao redor, cogitei a proposta de um experimento, que aqui divido com o leitor, para que possa levar a cabo por sua própria conta, tomando parte voluntária nesse laboratório de políticas corporais coletivas. Um grupo de pessoas, previamente combinado, adentraria à fila da O.R.C.A., cada pessoa bastante afastada uma da outra, e cada um começaria fazer comentários em voz alta de desagravo em relação àquela situação. Uma começaria, então, a responder os desagravos da outra, criando quase uma conversa coletiva.

Como reagiriam as outras pessoas? Elas também levantariam sua voz? Elas movimentariam seus corpos de alguma maneira imprevisível à rotina de uma fila?

Caso o experimento tomasse proporções maiores, seria aconselhado que fosse revelado aos demais participantes involuntários, num momento oportuno. Afinal, todo “contrato social” precisa ser explicitado quando a intenção é experimentar com ele.

Já em casa, conversando com minha mulher sobre meus planos de pesquisa, sobre o flerte e sobre a fila, o relato que me deu de seu próprio comportamento no jogo do flerte confirmou ainda mais minhas suspeitas quanto à estratégia de jogo feminina. Mas, quanto à fila, ela ponderou que nos pontos de ônibus e nas entradas de vagão a mesma costuma ser pouco respeitada, quase sempre furada e que, no momento de entrar nos transportes públicos, as pessoas se aglomeram de forma desordenada e pouco polida. E que aquele comportamento ordeiro que eu presenciara era típico não de qualquer brasileiro em qualquer fila, mas sim da fila da ponte O.R.C.A.

Mas por quê, pensamos? Seria porque na fila da ponte O.R.C.A existe um elemento a mais de controle: aquele papelzinho que nos entregam na catraca do metrô e que devemos mostrar para o fiscal na porta do micro-ônibus? Portanto, brasileiro só é bem comportado em fila quando tem um papel na mão, e a materialidade do papelucho tem um poder soberano tão grande que jamais é questionada? Somos mesmo cidadãos de papel, como diria o outro? É o pedaço de papel a verdadeira dádiva estatal que nos faz estar juntos?

Fica aí a pergunta. Quem quiser, pode tentar respondê-la na prática, com o papel, o corpo, a voz e a alma.

( Primeira versão do texto publicada em http://punkcanibal.zip.net )

levi-strauss-por-irving-penn-1970

“O rei está morto… Viva o seu rank!”

Existe um autor de obras antropológicas muito pouco conhecido nas ciências sociais brasileiras, talvez não tanto nas Letras mas com certeza na Antropologia, porém afamado internacionalmente, principalmente nos Estados Unidos e em países de língua espanhola. Seu nome é René Girard.

Sua tese – e todos os fenômenos sociais, dos mitos aos ritos, passando pela psiquê humana, pela literatura etc., o que dá a ela um pequeno toque megalomaníaco – se fundamenta no chamado “desejo mimético”. Este é o impulso que faz duas pessoas competirem pelo mesmo objeto. Existiria na origem de tudo um desejo comum por um objeto escasso, e isso seria anterior às diferenças geradas pelas rupturas advindas da competição. O cúmulo desse impulso chegaria quando as pessoas, uma imitando a outra, formariam um grande bloco violento de todos contra um, encontrando um bode expiatório para sua insatisfação. Este seria a vítima sacrificial, que depois de morta seria transformada no deus, no totem, no tabu, algo assim. A origem da “sociedade”, em suma, seria o linchamento.

A tese é sedutora e explica diversos fenômenos modernos. Explica muito bem um fenômeno ocorrido ontem numa universidade privada da Grande São Paulo (mais precisamente do meu amado ABC paulista).

Assim como algumas igrejas consideradas shoppings centers da fé, onde você entra e paga por umas bênçãos e alguns exorcismos, num frenesi coletivo de multidão, existem hoje universidades privadas onde se consome educação como se comprasse fast-food (ou enquanto se compra fast-food, já que essas universidades têm praça de alimentação). Esse tipo de empreendimento, em defesa do desenvolvimento da nação brasileira, beneficia-se da sempre crescente competição por cargos no mercado de trabalho e no infindável exército de reserva produzido pelo capitalismo.

O capitalismo é uma máquina de desperdiçar pessoas, ela precisa ter gente sobrando para funcionar. E para essas pessoas que sobram, ela ainda oferece cursos de “educação superior” e ganha com isso. Esse é o chamado avanço moderno: no passado o exército de reserva recebia a esmola da educação básica, hoje é o consumo da educação superior.

O que aconteceu ontem, então, num lugar como esse, tão seguro quanto um shopping center? Em suma, uma garota loira, de corpo escultural, resolveu ir à aula usando um vestido vermelho muito curto e apertadinho no corpo. Roupa de puta, diria a maioria.

E fama de puta é o que não falta, pois dizem que as prostitutas são uma clientela importante desse tipo de empresa educativa.

Isso certamente deixou os colegas da gostosa furiosos: como alguém ousava confirmar o estereótipo? Confirmar o que já desconfiavam: que aquela universidade tinha como público pessoas à margem do mercado, pessoas que precisavam vender seu próprio sexo, sua intimidade, para viver? Confirmar as desconfianças de que sua própria universidade, seu próprio objeto de consumo, confundia-se com uma puta? Uma universidade prostituta? Não, isso não! A multidão de milhares estudantes, furiosa, perseguiu a menina por toda a universidade e só não conseguiu o que queria porque alguém chamou a polícia.

Se Adorno estivesse vivo e dando aula numa universidade privada brasileira virada de pernas para o ar por estudantes revoltados, pelo menos dessa vez teria razão em chamar a polícia.

Na luta coletiva por um objeto escasso: um emprego, a prostituta é uma vítima muito propícia para a violência mimética insatisfeita. Ela “representa” – com letra maiúscula, já que segundo Girard a vítima sacrificial seria a origem de toda representação – a mercantilização da vida nua. Maldição de nudez à qual seus colegas não querem se ver expostos. Pois sabem que, vestidos ou despidos, são mercantis como ela. Daí seu linchamento moral em praça (de alimentação) pública (de uma instituição privada).

***

Calma, não me linche, leitor!

Com isso não quero dizer que a menina seja uma prostituta só por estar usando minissaia ou vestido curto e estar expondo ao mundo seu corpo sensual. E também não quero dizer que as prostitutas devam ser achincalhadas por representarem o cúmulo da maldade mercantil. Pelo contrário, talvez as prostitutas sejam mais desviantes do mercado do que possam parecer. De certa forma elas anunciam que, no limite, não existe escassez econômica se você está disposto a dividir sua mais valiosa intimidade com o mundo.

Também não quero dizer que esses estudantes não tenham lá alguma razão em sua revolta diante da marginalização – pois para o modo de vida capitalista a margem não é lá um lugar muito bem quisto.

De volta a Girard, gostaria de discordar dele notando que sua tese só funciona graças ao postulado da escassez, que é o postulado da Economia utilitarista neo-clássica.

A teoria de Girard funciona muito bem na “sociedade” da escassez ou, melhor, na “sociedade” em que o desperdício, para falar com Bataille outra vez, não é de coisas mas de gente.

Porque onde o postulado da escassez não está colocado – nas chamadas “sociedades da afluência” estudadas por Marshall Sahlins, a satisfação é fácil e garantida. As necessidades são satisfeitas graças ao aproveitamento da abundância da vida, graças a conhecimentos profundos e detalhados do meio ambiente, como mostrou Lévi-Strauss ao falar do “pensamento selvagem”, e talvez graças a uma diversidade de objetos do desejo, ou do desvio do desejo.

Reaproveitada por Pierre Clastres para falar das “sociedades contra o Estado”, a abundância é a condição necessária da relação de povos como os ameríndios e seus líderes são muitas vezes responsáveis por essa abundância e essa relação. Líderes sem poder e poderes fragmentados em diferentes aspectos, cargos e funções, que dão fruição para seus desejos. Não sem perdas, sem dor e sem austeridade, mas uma austeridade poderosa e generosa, mágica. E sempre com direito à preguiça…

O desvio que aparece nas “sociedades da afluência” e nas “sociedades contra o Estado” não é a forma predominante na nossa “sociedade”, sem dúvida. Mas ele também está presente nela. Em diversos lugares. Presente até nas prostitutas, ou na própria universidade.

No Brasil a universidade pública é o objeto de desejo máximo no sistema educacional (ao contrário do Estados Unidos, mas não tão radical quanto na Argentina, onde o acesso é muito maior), tudo bem… Mas o que importa é que instituições como ela, voltadas para a pesquisa, propiciam tanto vagas empregatícias e privilégios para os que a freqüentam quanto favorecem caminhos desviantes. A universidade pública não é una.

Mas será que, por ironia da tese de Girard, eu estaria aqui tentando me diferenciar dos meus competidores supostamente inferiores, mostrando que eu tenho mais legitimidade que eles ao acesso e à produção do objeto do saber só porque estudo em uma universidade pública? Que, no fundo, competimos pela mesma coisa?

Pois é isso que quero crer que não.

Porque a universidade que se volta à pesquisa permite que alguns encontrem um espaço reduzido de acesso a verbas, levando muitas vezes uma vida mais modesta que a de seus colegas de classe (nos dois sentidos da palavra “classe”) que optaram pelo mercado, mas se dedicando a um fim bem diverso do deles. Um fim que, no mínimo, tem sua dose de saber desinteressado. E para estudar coisas tão “desinteressantes” quanto a vida de Gioconda Mussolini (quem?!) ou os complicados povos Jê do Brasil Central, para estudar a vida de prostitutas, hermafroditas ou de pessoas que matam a própria família, como fez Foucault em seu libelo pela vida desviante e anti-fascista. Para estudar política ameríndia, xamanismo, dádiva, “sociedades da afluência” e “sociedades contra o Estado”…

No máximo, este é um fim que é puro desvio, pura busca de diferença.

Então, feliz ou infelizmente, a universidade pública brasileira propicia um canal para um desvio, obviamente um desvio minoritário (diferente do que ocorre na América indígena…), mas um desvio presente, antigo e atual, mito de origem da Universidade que ainda faz por se manifestar aqui e ali, por menos que seja.

***

De volta ao desvio da prostituta: não são só os acadêmicos ou os radicais que têm a percepção do fascismo do desejo mimético da escassez. Falando sobre o assunto de ontem com um colega antropólogo pela internet, ele me contou o seguinte. Estava ele com uma prostituta, uma garota de programa profissional, quando ela lhe disse que estudava Administração na já referida universidade privada e que ficava espantada com um fenômeno que notava lá. Nessa instituição os alunos se dividiam entre si com uma precisão extrema: os loiros andariam com os loiros, os morenos com os morenos, os mestiços com os mestiços, os pagodeiros com os pagodeiros, os rappers com os rappers, os ricos com os ricos, os gordos com os gordos e assim por diante. Ela não entendia como isso acontecia porque, segundo ela, fora dali não era assim… A violência mimética estava lá, anunciada.

Certa ou errada sobre a proliferação desse fenômeno, talvez graças a sua própria vida pessoal se situar num lugar em que as misturas aconteçam mais do que no resto da “sociedade”, ela teve sensibilidade e imaginação sociológica para perceber a situação e o perigo.

Um movimento panóptico e individualizante, um sistema de classificação que não tolera as figuras de linguagem, que precisa chegar ao cúmulo da identidade. Cada estudante não apenas fichado e separado pelo seu histórico escolar (ou pela sua especialidade de pesquisa…), mas também pela sua espontânea segregação.

Um perigo que está muito mais disseminado e muito mais presente nos meios intelectualizados ou radicais do que se imagina, haja vista o fim da moda do topless na França, por exemplo, ou a moralidade pudica do politicamente correto, que repudia todo tipo de referência ao sexo. Uma moralidade que não é muito diferente do machismo dos doutores que afirmam que, “no Brasil”, uma mulher que anda assim de vermelho e vestidinho colado está pedindo para sofrer violência, portanto não está livre de dolo e, obviamente, de culpa. Um tabu do sexo e também da diferença, que faz com que partidos e coletivos de esquerda ou anarquistas se separem cada vez mais uns dos outros, inclusive.

Ao contrário desse modo de agir, a antropologia mostra, desde Durkheim e Mauss até Lévi-Strauss, que as formas de classificar e relacionar diferenças nem sempre e nem em todo lugar foram ou são tão terríveis assim como os sistemas classificatórios das instituições modernas e sua busca por controle, identidade e individualização.

Acredito ter lido num artigo escrito por meu saudoso colega Luis Fernando Pereira que, segundo Lévi-Strauss, nos mitos ameríndios encontra-se um conflito entre os pólos impossíveis da proximidade e identidade máximas e da distância e da diferença máximas. Entre a linguagem figurada máxima e a identidade máxima entre símbolo e referente, mas um conflito que não se resolve jamais e uma opção que nunca é definitiva nem extrema. Parece-me que, ao contrário deles, ao separar tanto esses dois pólos, tentamos resolvê-los e acabamos por optar por uma equivalência de diferença com identidade, o que no limite é uma negação do simbólico.

Um perigo que está presente na ingenuidade simbólica cotidiana, da mais anedótica à mais mortífera. Da avó que confunde a personalidade dos personagens da novela com a de seus atores e bateria no vilão do folhetim se o visse na rua, até o homem de bem que confunde um negro com um bandido e…

Aparência e essência, imagem e ação, nada se duplica, nada diverge, tudo se unifica, torna-se puro. É papo reto, sem duplos sentidos, sem terceiras intenções, sem errar nem passar vergonha. É o eterno retorno do fascismo.

Proposta de ação direta: vamos todos usar minissaia. Sobretudo as mulheres, as mais voluptuosas.

http://punkcanibal.zip.net

It’s almost impossible to talk about this quite unknown thinker. Before any consideration the reader must to know Jean-Michel Chabineau. He had huge influence in Federalists thinkers as well as in early north american poetry. Nowadays this author is on focus because of his strongest innovations in the social (and now sports) sciences. In order to create a new perspective concerning the man as a whole, the philosophers, sociologists, anthropologists, and the new school of Liverpool Literature reinvented (as wrongly as possible) the ideas of Chabineau taking the concepts of “transfused place”, “unforgettable moment” and “unbelievable true” in others pathways. Among them, John Chipsantufinf, Maverick Nelson, Striped Horhernberg, Franz James and the main one Judith Aron. The structure of Chabineau’s work is based “in the out-structure of life in a way to reach the ‘real’ unreal place of self experience in the world of nature and things” as he wrote (J-M Chabineau, 1837 Apud J. Aron, 2008: pp. 474).

The influent Chabineau’s work in the thought of these authors was From the Largest Way of New Man (translated from the French edition [1837] by Walt Whitman), an impressive book about the Australian aborigine fundamental life trends in religion and new cultural practices. Chabineau wrote “the new practice in the descriptions of the aborigine’s experience, for the man of Cockatoo, in those days, was like the ‘barbarians ride killing people through the lands of Middle East and Europe. Then, over the Turkish highlands, they took the revelation of a new religion dislocating from one place to another by the board’And so, the Australian took the idea from Hawaiian Black Trunk” (J-M Chabineau Op. Cit. Apud J. Aron: pp. 477). In recent anthropological production we find his echoes in Marshall S.’s world famous Histories of Islands about the myth of Lono’s board and the sorcery in black nights over the neophytes. Chabineau’s ethnography is an emphatic description of Australian practice, showing how they became the first people to take the board as a new public and ecologic transport.

The Cockatoo

The Man of Cockatoo from Melville Island, coast of Arnhem Land. Probably the First Unbelievable One.

That was a new practice. At that time, the aborigines translated the language of the Old Board Spirit, now the perspectives (or the contortionisms) are trying to draw this kind of ‘aura’. On the myth of the Old Spirit Chabineau wrote: “Once upon a time, a kid is playing outside home, when a great Nadia attacks him. The Old Spirit, listening to the child’s shouts, brought him the object of Civilization: the board. The kid took it flying away from Nadia’s poison and left Melville Island“. This is the way J-M Chabineau describes the ritual in his ethnography. The child became the first boarder and the Man of the Cockatoo Totem. The Demiurge!

Chabineau’s ethnography is the true work of the so called 80’s turning point of the anthropology (as they called it in the USA) criticizing the “representation” as cultural images in the “classic anthropology”. So the Bulgarian and Kazakhstan liminal origins of Chabineau shows a great influence in the anthropological thought of 80’s and the opened tendencies concerning outside research’s objects of social practice.

Diz-se que nos últimos tempos, sobretudo na ponte aérea antropológica Rio-São Paulo, o debate em torno deste tema – os paradigmas do contorcionismo na antropologia – tem ganhado renovado fôlego. Fala-se em termos de simetrias, flexibilidades, reversibilidades e toda sorte de trejeitos e cacoetes, noções corriqueiras e familiares a todo e qualquer saltimbanco, especialmente os contorcionistas, mas que a princípio soam estranhas num ambiente dedicado quase que única e exclusivamente ao cultivo não do corpo, mas do intelecto. Mas eis que alguns bravos antropólogos vem exercitando esta tarefa quase impossível. Buscando abolir as fronteiras entre o corpo e o intelecto, a ação e a reflexão, o sensível e o inteligível, e assombrados por todos os seus nativos cerebrais, passados e contemporâneos, eis que vai surgindo um novo tipo de atividade no trabalho antropológico, há muito exercida mas só agora oficializada e aceita pelos pares como prática esportiva: o contorcionismo mental.

O contorcionismo mental não é coisa para principiantes. Longe disso, pois seria quase um suicídio, uma irresponsabilidade expor alguém não iniciado em suas técnicas a tamanho estresse! Para se aventurar neste tipo de atividade resolutamente humana, mas que submete a mente humana à condições extra-humanas, ou sobre-humanas, é necessário um longo e dificil adestramento nas sinuosidades do método do volteio, sobretudo o método francês. Só depois de se submeter a este árduo e duro adestramento, o sujeito estará apto a arriscar-se em séries aparentemente simples como esta, colhida aqui totalmente ao acaso e a título de exemplo, mas que exigem a mais rigorosa disciplina para sua completa compreensão: “não pretendo me situar em um lugar exterior ao malabarismo, mas no exterior do malabarismo, no interior da dimensão exterior que lhe é imanente”… Mire veja: é ou não é um troço do muito dificultoso?!

hindu

Meninos com Queixada. Aldeia Rio Negro Ocaia. Rondônia, 1987. Foto: Beto Barcelos.1. A perspectiva Yudjá,  segundo Tânia Stolze Lima: não é que os índios pensam que os porcos são gente, mas sim que os porcos, entre si, se vêem como gente e vêem os humanos como sendo gente assim como eles, ou seja, porcos, e é isto que faz a vida humana muito perigosa.

 

Indio Matis. Terra índigena do Vale do Javari. Amazonas, 1985. Foto: Philippe Erikson.

 2. O perspectivismo ameríndio, segundo Eduardo Viveiros de Castro: macaco é gente, porque gente é macaco de onça; e como onça é gente também, gente é onça de macaco, sendo gente.

 

 

chimpanze3. A perspectiva símia, segundo Franz Kafka: o chimpanzé de “Um relatório à academia”, pequena narrativa de O médico rural, tem de início a absoluta certeza de que não é humano, mas sabe também que pode e deve tornar-se humano, ou melhor, logo descobre que o único caminho para se tornar realmente livre, desde a sua captura na floresta sombria, é mimetizando o poder de seus raptores, e cujo progresso na evolução humana agora relata aos acadêmicos estupefatos…

Aula de teatro. Num esforço de transfiguração… desencontro de mãos, pés, emoção e consciência. Me desespero com a minha própria precariedade.

Crio escape do palco: sento-me em frente de outro, fito seus olhos. São esses os poucos instantes de mim: sem medo, cheia de comunicação, só pulsão. Daquele momento, restou o texto, gesto de palavra:

 

Vou pedir pra vcs se levantarem e se espalharem,

apropriem-se da mesa, sentem-se onde quiserem.

 Não sei ser no palco separado, dividido; só sei ser entre a gente. Por entre a gente.

O palco me é estranho.

 Me dissolvo na platéia, crio o corpo coletivo.

Mas sou platéia que não adormece, mantenho-me FAMINTA.

A toalha não é branca, não. É vermelha. Terra roxa.

 Da platéia crio palco e mesa.

Me alojo na BRECHA, na fenda. No OMITIDO, naquilo que parece esquecido.

Mantenho-me FAMINTA. Cheia de vida, em condições precárias.

 

’Vem por aqui’- dizem-se alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: ‘Vem por aqui!’

 

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há nos meus olhos ironias e cansaços)

E nunca vou por ali…

 

A minha glória é esta:

Criar constrangimento!

Não sentar em mesa pronta.

– Que eu vivo com o mesmo sem vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

 

L., trouxe-lhe uma taça. Sirvo-lhe vinho até derramar. A embriaguez alimenta.

 

Vem por aqui, dizem-me alguns com olhos doces

O DESVIO é o meu prato.

Não tive nem pai nem mãe,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo

 

C.: marmita de pensão na quarta-feira: dia de fartura. No primeiro compartimento: Feijoada. No segundo: Arroz e farinha. No último: laranja e couve.

 

Mantenho-me FAMINTA. Cheia de vida em condições precárias. 

 “Corre em vossas veias sangre velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o longe e a miragem”

 

Sou fruto de uma burguesia decadente, moralmente indecente, alucinadamente coerente.

 

C.: sirvo-lhe manjar com calda de ameixa em prato de porcelana francesa, com relevo na borda. Ah… uma colher de prata com seu próprio nome grafado.

 

Não, não vou por aí!

Só vou por onde me levam meus próprios passos…

Se não podes me oferecer o que me alimenta,

Por que me repetis: “Vem por aqui?”

 

N.: quinoa. O extraordinário no cotidiano. Acabou de ser cozida. Suave na boca, delicadamente doce, alimento potente.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga “vem por aqui”!

 

F.: marmita de bóia-fria, Nossos sheikes do Pro-Alcool. Uma caixinha de metal, que provavelmente tem só arroz e meio ovo cozido. Mas não vou abrir, não. Gosto da intriga que lhe causa. Gosto da dúvida.

 

Eu que nunca principo nem acabo.

Me alojo na BRECHA, na fenda. No OMITIDO, naquilo que parece esquecido.

 

J.; milho verde bem branquinho. Quente e novo. No começo come-se com cuidado, pra sentir os grãos estourarem na boca, mas logo agente se lambuja.

 

O DESVIO é meu prato.

 

R.: chocolate com gengibre. Embrulhado pra presente, com um flor, não qualquer flor não… um cravo vermelho, porque dá pra comer também.

 

Eu tenho minha LOUCURA!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

 

G.: um caju, sem prato, só um caju. Fruta de gosto nada fácil, sem açúcar vulgar. Colorida e com cera por fora, inquietante por dentro: a gente tem vontade de morder, mas tenta só chupar, comida que nunca se contenta com a boca, escorre pelo pescoço.

 

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios

Eu, tenho minha loucura

Levanto-a como um faço a arder na noite escura.

O palco me é estranho.

 

A.: cuia com bolota de farinha, feijão e frango. Use apenas a ponta desses três dedos para ir tirando pedaços devagar.

 

A toalha não é branca, não. É vermelha. Terra roxa.

Porque comida é pra compartilhar. Gente para experimentar.

Bom APETITE.

Em Shamanism, Colonialism and Wild Man [1983], Michael Taussig afirma que o realismo mágico através do qual opera as histórias sobre os horrores da selva e da selvageria foi essencial à organização do trabalho de exploração da borracha na região do Putumaio, assim como a ficção consumista de Polanyi [1957] foi para a economia capitalista desenvolvida, afirmando então que o “[…] crucial é entender como essas histórias operaram, através do realismo mágico, a criação de uma cultura do terror que dominava tanto os brancos como os índios”.

indios_huitotoCom isto, afirma o antropólogo que a análise dessas realidades ficcionais e da imaginação que as alimenta – “[…] uma poderosa força política sem a qual não se poderia ter realizado a conquista nem o controle da extração da borracha” – deve voltar-se aos seus aspectos míticos, encerrados na relação entre selvageria e negócio, canibalismo e capitalismo, concluindo que, no caso do Putumaio, o que requer maior análise é a mímese colonial entre o mal atribuído aos selvagens e a selvageria perpetrada pelos brancos, mímese recíproca – embora distorcida – que é intrínseca à construção cultural da realidade colonial: “[…] ‘espelho colonial’ que devolve aos conquistadores o reflexo da barbárie de suas próprias relações sociais, barbárie que é imputada aos maus selvagens. […] E o que é transformado em discurso pela astuciosa prática narrativa dos brancos é o mesmo que eles praticam nos corpos dos índios”.
Tal leitura a contrapelo do texto de Taussig, se assim posso falar, parece ressoar numa pequena narrativa de Franz Kafka, que reproduzo a seguir, sendo recomendada a rigorosa leitura em voz alta, para a apreensão do ritmo impresso na prosa:
   
NA GALERIA
Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mão que na verdade são martelos a vapor – talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o BASTA! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.
 
bailarina_cavalo
 
Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande salto mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta na poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo inteiro – uma vez que é assim o espectador da galeria apóia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber.

 ♦

Segundo seu tradutor, Modesto Carone, esta narrativa, contida em O médico rural [1990], é um “[…] verdadeiro poema em prosa composto por dois períodos e duas codas dialeticamente articulados, em que os dados da realidade nua e crua do primeiro são apresentados como hipótese, ao passo que a versão distorcida e cor-de-rosa do segundo vem marcada pelas certezas do indicativo. Nada disso no entanto é estranho, principalmente para quem disse, um dia, que no mundo ‘há muita esperança, mas não para nós'”. Nada estranha também a proximidade com Taussig, se lembrarmos que este encontra o princípio ‘natural’ da mímese – e seu leitmotiv – em outra narrativa kafkiana do mesmo livro, “Um relatório à academia”, do qual Taussig empresta o título ao prefácio de seu Mimesis and alterity [1993].

Assim, pergunto: Em que medida os “índios” do Putumaio descritos por Michael Taussig guardam semelhanças com esta amazona frágil e tísica, mas que se apresenta como bela dama em branco e vermelho, girando por séculos a fio no picadeiro macabro do espaço da morte? Em que medida os “brancos” não se parecem com este diretor de circo a empunhar o chicote chamado “exigências de mercado”, cujas chibatadas mantêm o galope do cavalo chamado “empresa capitalista” em torno do pidadeiro da economia global? Em que medida os “muchachos” não se aproximam dos orgulhosos criados de libré que controlam as cortinas/véu alucinatório, sem descerrá-lo todavia? Em que medida o ocidente não se senta na galeria e, ao assistir a tal espetáculo macabro de que é co-partícipe, chora sem o saber? E, finalmente, o quanto não haveria deste espectador que irrompe no picadeiro para dizer BASTA! em Timerman, em Taussig e em Mutumbajoy, ao buscarem, tal qual outros escritores argentinos do período da sua ditadura militar (como Manuel Puig e Luis Gusmán), romper o círculo de sortilégio das narrativas sobre o terror ao orquestrar o realismo mágico com a realidade da magia [Taussig 1983]?