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Tag Archives: realismo mágico

Em Shamanism, Colonialism and Wild Man [1983], Michael Taussig afirma que o realismo mágico através do qual opera as histórias sobre os horrores da selva e da selvageria foi essencial à organização do trabalho de exploração da borracha na região do Putumaio, assim como a ficção consumista de Polanyi [1957] foi para a economia capitalista desenvolvida, afirmando então que o “[…] crucial é entender como essas histórias operaram, através do realismo mágico, a criação de uma cultura do terror que dominava tanto os brancos como os índios”.

indios_huitotoCom isto, afirma o antropólogo que a análise dessas realidades ficcionais e da imaginação que as alimenta – “[…] uma poderosa força política sem a qual não se poderia ter realizado a conquista nem o controle da extração da borracha” – deve voltar-se aos seus aspectos míticos, encerrados na relação entre selvageria e negócio, canibalismo e capitalismo, concluindo que, no caso do Putumaio, o que requer maior análise é a mímese colonial entre o mal atribuído aos selvagens e a selvageria perpetrada pelos brancos, mímese recíproca – embora distorcida – que é intrínseca à construção cultural da realidade colonial: “[…] ‘espelho colonial’ que devolve aos conquistadores o reflexo da barbárie de suas próprias relações sociais, barbárie que é imputada aos maus selvagens. […] E o que é transformado em discurso pela astuciosa prática narrativa dos brancos é o mesmo que eles praticam nos corpos dos índios”.
Tal leitura a contrapelo do texto de Taussig, se assim posso falar, parece ressoar numa pequena narrativa de Franz Kafka, que reproduzo a seguir, sendo recomendada a rigorosa leitura em voz alta, para a apreensão do ritmo impresso na prosa:
   
NA GALERIA
Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mão que na verdade são martelos a vapor – talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o BASTA! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.
 
bailarina_cavalo
 
Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande salto mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta na poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo inteiro – uma vez que é assim o espectador da galeria apóia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber.

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Segundo seu tradutor, Modesto Carone, esta narrativa, contida em O médico rural [1990], é um “[…] verdadeiro poema em prosa composto por dois períodos e duas codas dialeticamente articulados, em que os dados da realidade nua e crua do primeiro são apresentados como hipótese, ao passo que a versão distorcida e cor-de-rosa do segundo vem marcada pelas certezas do indicativo. Nada disso no entanto é estranho, principalmente para quem disse, um dia, que no mundo ‘há muita esperança, mas não para nós'”. Nada estranha também a proximidade com Taussig, se lembrarmos que este encontra o princípio ‘natural’ da mímese – e seu leitmotiv – em outra narrativa kafkiana do mesmo livro, “Um relatório à academia”, do qual Taussig empresta o título ao prefácio de seu Mimesis and alterity [1993].

Assim, pergunto: Em que medida os “índios” do Putumaio descritos por Michael Taussig guardam semelhanças com esta amazona frágil e tísica, mas que se apresenta como bela dama em branco e vermelho, girando por séculos a fio no picadeiro macabro do espaço da morte? Em que medida os “brancos” não se parecem com este diretor de circo a empunhar o chicote chamado “exigências de mercado”, cujas chibatadas mantêm o galope do cavalo chamado “empresa capitalista” em torno do pidadeiro da economia global? Em que medida os “muchachos” não se aproximam dos orgulhosos criados de libré que controlam as cortinas/véu alucinatório, sem descerrá-lo todavia? Em que medida o ocidente não se senta na galeria e, ao assistir a tal espetáculo macabro de que é co-partícipe, chora sem o saber? E, finalmente, o quanto não haveria deste espectador que irrompe no picadeiro para dizer BASTA! em Timerman, em Taussig e em Mutumbajoy, ao buscarem, tal qual outros escritores argentinos do período da sua ditadura militar (como Manuel Puig e Luis Gusmán), romper o círculo de sortilégio das narrativas sobre o terror ao orquestrar o realismo mágico com a realidade da magia [Taussig 1983]?