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Existe um autor de obras antropológicas muito pouco conhecido nas ciências sociais brasileiras, talvez não tanto nas Letras mas com certeza na Antropologia, porém afamado internacionalmente, principalmente nos Estados Unidos e em países de língua espanhola. Seu nome é René Girard.

Sua tese – e todos os fenômenos sociais, dos mitos aos ritos, passando pela psiquê humana, pela literatura etc., o que dá a ela um pequeno toque megalomaníaco – se fundamenta no chamado “desejo mimético”. Este é o impulso que faz duas pessoas competirem pelo mesmo objeto. Existiria na origem de tudo um desejo comum por um objeto escasso, e isso seria anterior às diferenças geradas pelas rupturas advindas da competição. O cúmulo desse impulso chegaria quando as pessoas, uma imitando a outra, formariam um grande bloco violento de todos contra um, encontrando um bode expiatório para sua insatisfação. Este seria a vítima sacrificial, que depois de morta seria transformada no deus, no totem, no tabu, algo assim. A origem da “sociedade”, em suma, seria o linchamento.

A tese é sedutora e explica diversos fenômenos modernos. Explica muito bem um fenômeno ocorrido ontem numa universidade privada da Grande São Paulo (mais precisamente do meu amado ABC paulista).

Assim como algumas igrejas consideradas shoppings centers da fé, onde você entra e paga por umas bênçãos e alguns exorcismos, num frenesi coletivo de multidão, existem hoje universidades privadas onde se consome educação como se comprasse fast-food (ou enquanto se compra fast-food, já que essas universidades têm praça de alimentação). Esse tipo de empreendimento, em defesa do desenvolvimento da nação brasileira, beneficia-se da sempre crescente competição por cargos no mercado de trabalho e no infindável exército de reserva produzido pelo capitalismo.

O capitalismo é uma máquina de desperdiçar pessoas, ela precisa ter gente sobrando para funcionar. E para essas pessoas que sobram, ela ainda oferece cursos de “educação superior” e ganha com isso. Esse é o chamado avanço moderno: no passado o exército de reserva recebia a esmola da educação básica, hoje é o consumo da educação superior.

O que aconteceu ontem, então, num lugar como esse, tão seguro quanto um shopping center? Em suma, uma garota loira, de corpo escultural, resolveu ir à aula usando um vestido vermelho muito curto e apertadinho no corpo. Roupa de puta, diria a maioria.

E fama de puta é o que não falta, pois dizem que as prostitutas são uma clientela importante desse tipo de empresa educativa.

Isso certamente deixou os colegas da gostosa furiosos: como alguém ousava confirmar o estereótipo? Confirmar o que já desconfiavam: que aquela universidade tinha como público pessoas à margem do mercado, pessoas que precisavam vender seu próprio sexo, sua intimidade, para viver? Confirmar as desconfianças de que sua própria universidade, seu próprio objeto de consumo, confundia-se com uma puta? Uma universidade prostituta? Não, isso não! A multidão de milhares estudantes, furiosa, perseguiu a menina por toda a universidade e só não conseguiu o que queria porque alguém chamou a polícia.

Se Adorno estivesse vivo e dando aula numa universidade privada brasileira virada de pernas para o ar por estudantes revoltados, pelo menos dessa vez teria razão em chamar a polícia.

Na luta coletiva por um objeto escasso: um emprego, a prostituta é uma vítima muito propícia para a violência mimética insatisfeita. Ela “representa” – com letra maiúscula, já que segundo Girard a vítima sacrificial seria a origem de toda representação – a mercantilização da vida nua. Maldição de nudez à qual seus colegas não querem se ver expostos. Pois sabem que, vestidos ou despidos, são mercantis como ela. Daí seu linchamento moral em praça (de alimentação) pública (de uma instituição privada).

***

Calma, não me linche, leitor!

Com isso não quero dizer que a menina seja uma prostituta só por estar usando minissaia ou vestido curto e estar expondo ao mundo seu corpo sensual. E também não quero dizer que as prostitutas devam ser achincalhadas por representarem o cúmulo da maldade mercantil. Pelo contrário, talvez as prostitutas sejam mais desviantes do mercado do que possam parecer. De certa forma elas anunciam que, no limite, não existe escassez econômica se você está disposto a dividir sua mais valiosa intimidade com o mundo.

Também não quero dizer que esses estudantes não tenham lá alguma razão em sua revolta diante da marginalização – pois para o modo de vida capitalista a margem não é lá um lugar muito bem quisto.

De volta a Girard, gostaria de discordar dele notando que sua tese só funciona graças ao postulado da escassez, que é o postulado da Economia utilitarista neo-clássica.

A teoria de Girard funciona muito bem na “sociedade” da escassez ou, melhor, na “sociedade” em que o desperdício, para falar com Bataille outra vez, não é de coisas mas de gente.

Porque onde o postulado da escassez não está colocado – nas chamadas “sociedades da afluência” estudadas por Marshall Sahlins, a satisfação é fácil e garantida. As necessidades são satisfeitas graças ao aproveitamento da abundância da vida, graças a conhecimentos profundos e detalhados do meio ambiente, como mostrou Lévi-Strauss ao falar do “pensamento selvagem”, e talvez graças a uma diversidade de objetos do desejo, ou do desvio do desejo.

Reaproveitada por Pierre Clastres para falar das “sociedades contra o Estado”, a abundância é a condição necessária da relação de povos como os ameríndios e seus líderes são muitas vezes responsáveis por essa abundância e essa relação. Líderes sem poder e poderes fragmentados em diferentes aspectos, cargos e funções, que dão fruição para seus desejos. Não sem perdas, sem dor e sem austeridade, mas uma austeridade poderosa e generosa, mágica. E sempre com direito à preguiça…

O desvio que aparece nas “sociedades da afluência” e nas “sociedades contra o Estado” não é a forma predominante na nossa “sociedade”, sem dúvida. Mas ele também está presente nela. Em diversos lugares. Presente até nas prostitutas, ou na própria universidade.

No Brasil a universidade pública é o objeto de desejo máximo no sistema educacional (ao contrário do Estados Unidos, mas não tão radical quanto na Argentina, onde o acesso é muito maior), tudo bem… Mas o que importa é que instituições como ela, voltadas para a pesquisa, propiciam tanto vagas empregatícias e privilégios para os que a freqüentam quanto favorecem caminhos desviantes. A universidade pública não é una.

Mas será que, por ironia da tese de Girard, eu estaria aqui tentando me diferenciar dos meus competidores supostamente inferiores, mostrando que eu tenho mais legitimidade que eles ao acesso e à produção do objeto do saber só porque estudo em uma universidade pública? Que, no fundo, competimos pela mesma coisa?

Pois é isso que quero crer que não.

Porque a universidade que se volta à pesquisa permite que alguns encontrem um espaço reduzido de acesso a verbas, levando muitas vezes uma vida mais modesta que a de seus colegas de classe (nos dois sentidos da palavra “classe”) que optaram pelo mercado, mas se dedicando a um fim bem diverso do deles. Um fim que, no mínimo, tem sua dose de saber desinteressado. E para estudar coisas tão “desinteressantes” quanto a vida de Gioconda Mussolini (quem?!) ou os complicados povos Jê do Brasil Central, para estudar a vida de prostitutas, hermafroditas ou de pessoas que matam a própria família, como fez Foucault em seu libelo pela vida desviante e anti-fascista. Para estudar política ameríndia, xamanismo, dádiva, “sociedades da afluência” e “sociedades contra o Estado”…

No máximo, este é um fim que é puro desvio, pura busca de diferença.

Então, feliz ou infelizmente, a universidade pública brasileira propicia um canal para um desvio, obviamente um desvio minoritário (diferente do que ocorre na América indígena…), mas um desvio presente, antigo e atual, mito de origem da Universidade que ainda faz por se manifestar aqui e ali, por menos que seja.

***

De volta ao desvio da prostituta: não são só os acadêmicos ou os radicais que têm a percepção do fascismo do desejo mimético da escassez. Falando sobre o assunto de ontem com um colega antropólogo pela internet, ele me contou o seguinte. Estava ele com uma prostituta, uma garota de programa profissional, quando ela lhe disse que estudava Administração na já referida universidade privada e que ficava espantada com um fenômeno que notava lá. Nessa instituição os alunos se dividiam entre si com uma precisão extrema: os loiros andariam com os loiros, os morenos com os morenos, os mestiços com os mestiços, os pagodeiros com os pagodeiros, os rappers com os rappers, os ricos com os ricos, os gordos com os gordos e assim por diante. Ela não entendia como isso acontecia porque, segundo ela, fora dali não era assim… A violência mimética estava lá, anunciada.

Certa ou errada sobre a proliferação desse fenômeno, talvez graças a sua própria vida pessoal se situar num lugar em que as misturas aconteçam mais do que no resto da “sociedade”, ela teve sensibilidade e imaginação sociológica para perceber a situação e o perigo.

Um movimento panóptico e individualizante, um sistema de classificação que não tolera as figuras de linguagem, que precisa chegar ao cúmulo da identidade. Cada estudante não apenas fichado e separado pelo seu histórico escolar (ou pela sua especialidade de pesquisa…), mas também pela sua espontânea segregação.

Um perigo que está muito mais disseminado e muito mais presente nos meios intelectualizados ou radicais do que se imagina, haja vista o fim da moda do topless na França, por exemplo, ou a moralidade pudica do politicamente correto, que repudia todo tipo de referência ao sexo. Uma moralidade que não é muito diferente do machismo dos doutores que afirmam que, “no Brasil”, uma mulher que anda assim de vermelho e vestidinho colado está pedindo para sofrer violência, portanto não está livre de dolo e, obviamente, de culpa. Um tabu do sexo e também da diferença, que faz com que partidos e coletivos de esquerda ou anarquistas se separem cada vez mais uns dos outros, inclusive.

Ao contrário desse modo de agir, a antropologia mostra, desde Durkheim e Mauss até Lévi-Strauss, que as formas de classificar e relacionar diferenças nem sempre e nem em todo lugar foram ou são tão terríveis assim como os sistemas classificatórios das instituições modernas e sua busca por controle, identidade e individualização.

Acredito ter lido num artigo escrito por meu saudoso colega Luis Fernando Pereira que, segundo Lévi-Strauss, nos mitos ameríndios encontra-se um conflito entre os pólos impossíveis da proximidade e identidade máximas e da distância e da diferença máximas. Entre a linguagem figurada máxima e a identidade máxima entre símbolo e referente, mas um conflito que não se resolve jamais e uma opção que nunca é definitiva nem extrema. Parece-me que, ao contrário deles, ao separar tanto esses dois pólos, tentamos resolvê-los e acabamos por optar por uma equivalência de diferença com identidade, o que no limite é uma negação do simbólico.

Um perigo que está presente na ingenuidade simbólica cotidiana, da mais anedótica à mais mortífera. Da avó que confunde a personalidade dos personagens da novela com a de seus atores e bateria no vilão do folhetim se o visse na rua, até o homem de bem que confunde um negro com um bandido e…

Aparência e essência, imagem e ação, nada se duplica, nada diverge, tudo se unifica, torna-se puro. É papo reto, sem duplos sentidos, sem terceiras intenções, sem errar nem passar vergonha. É o eterno retorno do fascismo.

Proposta de ação direta: vamos todos usar minissaia. Sobretudo as mulheres, as mais voluptuosas.

http://punkcanibal.zip.net

5 Comments

  1. Gostei mto do artigo. E da proposta tbém! Hj mesmo tirarei minha minissaia do armário e a usarei com meia arrastão e salto alto: acho q fica ainda mais provocante. Será que também vou merecer um linchamento público?

  2. PERFEITO!

  3. Seria suspeito falar… conhecendo assim, acho que pode acabar virando sucesso de público mesmo que um fracasso de crítica…proposta de ação diretamente enlouquecedora!!!

  4. Eu fico com o “sobretudo”.

  5. Ato contra a violência sexista na UNIBAN!
    09.11 | segunda-feira | 18h
    Na porta da Uniban São Bernardo do Campo (Avenida Rudge Ramos, 1501)


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