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Aula de teatro. Num esforço de transfiguração… desencontro de mãos, pés, emoção e consciência. Me desespero com a minha própria precariedade.

Crio escape do palco: sento-me em frente de outro, fito seus olhos. São esses os poucos instantes de mim: sem medo, cheia de comunicação, só pulsão. Daquele momento, restou o texto, gesto de palavra:

 

Vou pedir pra vcs se levantarem e se espalharem,

apropriem-se da mesa, sentem-se onde quiserem.

 Não sei ser no palco separado, dividido; só sei ser entre a gente. Por entre a gente.

O palco me é estranho.

 Me dissolvo na platéia, crio o corpo coletivo.

Mas sou platéia que não adormece, mantenho-me FAMINTA.

A toalha não é branca, não. É vermelha. Terra roxa.

 Da platéia crio palco e mesa.

Me alojo na BRECHA, na fenda. No OMITIDO, naquilo que parece esquecido.

Mantenho-me FAMINTA. Cheia de vida, em condições precárias.

 

’Vem por aqui’- dizem-se alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: ‘Vem por aqui!’

 

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há nos meus olhos ironias e cansaços)

E nunca vou por ali…

 

A minha glória é esta:

Criar constrangimento!

Não sentar em mesa pronta.

– Que eu vivo com o mesmo sem vontade

Com que rasguei o ventre a minha mãe.

 

L., trouxe-lhe uma taça. Sirvo-lhe vinho até derramar. A embriaguez alimenta.

 

Vem por aqui, dizem-me alguns com olhos doces

O DESVIO é o meu prato.

Não tive nem pai nem mãe,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo

 

C.: marmita de pensão na quarta-feira: dia de fartura. No primeiro compartimento: Feijoada. No segundo: Arroz e farinha. No último: laranja e couve.

 

Mantenho-me FAMINTA. Cheia de vida em condições precárias. 

 “Corre em vossas veias sangre velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o longe e a miragem”

 

Sou fruto de uma burguesia decadente, moralmente indecente, alucinadamente coerente.

 

C.: sirvo-lhe manjar com calda de ameixa em prato de porcelana francesa, com relevo na borda. Ah… uma colher de prata com seu próprio nome grafado.

 

Não, não vou por aí!

Só vou por onde me levam meus próprios passos…

Se não podes me oferecer o que me alimenta,

Por que me repetis: “Vem por aqui?”

 

N.: quinoa. O extraordinário no cotidiano. Acabou de ser cozida. Suave na boca, delicadamente doce, alimento potente.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga “vem por aqui”!

 

F.: marmita de bóia-fria, Nossos sheikes do Pro-Alcool. Uma caixinha de metal, que provavelmente tem só arroz e meio ovo cozido. Mas não vou abrir, não. Gosto da intriga que lhe causa. Gosto da dúvida.

 

Eu que nunca principo nem acabo.

Me alojo na BRECHA, na fenda. No OMITIDO, naquilo que parece esquecido.

 

J.; milho verde bem branquinho. Quente e novo. No começo come-se com cuidado, pra sentir os grãos estourarem na boca, mas logo agente se lambuja.

 

O DESVIO é meu prato.

 

R.: chocolate com gengibre. Embrulhado pra presente, com um flor, não qualquer flor não… um cravo vermelho, porque dá pra comer também.

 

Eu tenho minha LOUCURA!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

 

G.: um caju, sem prato, só um caju. Fruta de gosto nada fácil, sem açúcar vulgar. Colorida e com cera por fora, inquietante por dentro: a gente tem vontade de morder, mas tenta só chupar, comida que nunca se contenta com a boca, escorre pelo pescoço.

 

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios

Eu, tenho minha loucura

Levanto-a como um faço a arder na noite escura.

O palco me é estranho.

 

A.: cuia com bolota de farinha, feijão e frango. Use apenas a ponta desses três dedos para ir tirando pedaços devagar.

 

A toalha não é branca, não. É vermelha. Terra roxa.

Porque comida é pra compartilhar. Gente para experimentar.

Bom APETITE.

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